Resgates

    

    


                                                         BRASIL TERRA INDÍGENA


    Nunca pensei que um dia minha missão seria resgatar uma pessoa. Vou te contar como tudo aconteceu. Neste ano de 2025, minha turma da escola, com crianças de 4 e 5 anos, desenvolveu o Projeto Povos Originários: Cultura Indígena no primeiro semestre e Cultura Africana no segundo semestre. Como fechamento do projeto indígena, queria ter levado a turma até o Museu das Culturas Indígenas, porém não foi possível, considere como uma longa história envolvida na teoria da conspiração. Se você quiser te conto num outro momento.

    Mas, voltando a essa belíssima e arriscada história...Como eu não pude levar as crianças ao Museu das Culturas Indígenas aqui em São Paulo, comecei a procurar pessoas que pudessem ter contatos de povos indígenas para fazer apresentações para minha turma ou para a escola inteira.

    Falei com a professora Célia que me passou o número do telefone da Cacique Maria do povo Guarani, tentei um primeiro contato que não foi bem sucedido. Não desisti, me lembrei do Maru do povo Huni Kuin que eu conheci no próprio museu em uma das primeiras visitas que fiz, momento que trocamos whatsapp, mas como ele mora na aldeia no Acre, também a visita não seria possível. 

    Contatei o Museu das Culturas Indígenas que indicou o Xipu do povo Puri, que enviou uma proposta de apresentação, mas como a escola é pública, eu precisava de três orçamentos para a contratação.

    Foi então que uma funcionária da escola comentou que a professora Cynthia teria o contato de um indígena. Mais do que depressa, mandei uma mensagem e ela me confirmou, encaminhando o contato do Piatã também conhecido por Damião.

    Três dias após estar com seu número, enviei uma mensagem de voz me apresentando como professora, com o projeto da cultura indígena procurando uma pessoa que pudesse vir à escola para conversar com as crianças. Foi aí que para minha surpresa, além de um "sim, eu posso ir", veio um pedido de ajuda: "Você pode me ajudar? Me tira daqui?", "arruma um quarto para eu morar, eu não posso mais ficar aqui, a dona da casa está pedindo para eu sair e eu não tenho para onde ir". 

Eu pedi para ele esperar alguns dias até eu descobrir como poderia ajudá-lo.

    Articular os meus contatos, na tentativa de encontrar um quarto para alugar ou uma aldeia aldeia que pudesse recebê-lo. A professora Claudia comentou que tinha visto e que buscaria o contato, mas no dia seguinte comentou que a placa de aluga-se não estava mais lá. A quem eu poderia recorrer ajuda? Eu não pensava em ninguém. Fui treinar com a ideia de sair do foco para encontrar uma solução. 

    Fui para a academia  e enquanto pedalava me lembrei do Maru. Mandei uma mensagem de texto explicando o caso do irmão Piatã. Uns instantes depois, Maru me liga dizendo que a minha mensagem chegou no momento que ele estava pensando em me ligar. Conversamos por uns dez minutos, ele me contando que estava no Rio de Janeiro e que podia receber o Damião na escola indígena em Paraty. Pensa na minha alegria!!!!! Claro, compartilhei para ambos os contatos, assim os dois discutiriam   os detalhes da viagem, desta forma eu tinha uma luz no fim do túnel.

    Liguei para o amigo taxista pedindo uma ajuda: "Ricardo, preciso de um agendamento com você, dia X e tal hora, você me leva nesse endereço? Ok! Te pego em casa e vamos para...ops..o nome dessa estrada tem em três cidades diferentes.

    Falei com o Paulo Damião também conhecido por Piatã,  pedindo seu endereço certinho, nem ele sabia, porém descobriu. 

    No dia anterior ao resgate, Maru me avisa que não podia receber Piatã porque estava de viagem para Brasília com a esposa, mas que o irmão podia descer em Paraty e encontrar o povo Tapaxós no Centro Histórico da cidade. Voltei a falar com o Damião afim de saber qual seria sua decisão. Ele iria para os Tapaxós, os Guaranis ou Huni Kuin, afinal a vida é dele, assim como a escolha.

    No dia seguinte, trabalhei de manhã na escola e a tarde o Ricardo me buscou às 14h e seguimos para  Cotia, onde a saga estava por vir.

    Bairro periférico com ruas sem placas de identificação e casas sem numeração. Como vamos encontrar Piatã? O aplicativo girava como um louco, o celular sem sinal de wi-fi, várias tentativas de ligação e nenhuma notícia do ser humano. Andamos por ruas estreitas, encontrando pessoas drogadas e alcoolizadas, jovens carregando crianças e balançando receitas médicas pedindo ajuda e seguindo o carro com semblante de desespero.

    O que eu tinha era o endereço não encontrado, dois pontos de referência, o mercado e a escola. Pedi para o taxista esperar, desci do carro com a foto do rapaz e fui perguntando para as pessoas se o conheciam; um risco. O que vamos fazer? Esperamos! "Se ele não atender, vamos embora", combinado estava.

    Me sentei no banco de trás do táxi e liguei, era a última chance. Ele atendeu pedindo desculpas por ter dormido pois estava fraco sem comer. Eu fui enfática, estou na frente do mercado te esperando para irmos embora. Damião pediu para que eu o esperasse. Saí do carro com ele vindo em minha direção trazendo na mão um filtro dos sonhos e um brinco de penas, estendendo a mão e me trazendo como presente pela ajuda.

    Perguntei sobre sua bagagem, ele disse que estava pesado. Fomos até a única casa da rua que tinha número. Paramos o carro em frente um portão de ferro que eu já conhecia, me convidou para entrar. Eu fiquei do lado de fora, olhando para o quintal onde reconheci um sofá no canto direito, um caminho sinuoso repleto de vasos de plantas e uma casinha branca pequena com a vista para a floresta. Reconheci até o galho emaranhado da árvore que abrigava um ninho de pássaros famintos.

    Damião trouxe suas mochilas para o carro, encostou o pesado portão de ferro e entramos no carro. O caminho inteiro ele veio contando como tinha chegado ali, onde e como estava trabalhando, mostrou sua identidade que devolvi sem examinar nada. Ele não precisava provar nada para mim. Contou sobre sua aldeia, sobre o assassinato do seu líder, pessoas torturadas, mortas e esquartejadas na frente das crianças, com as invasões. Ele não sabia contar como chegou em São Paulo, mas sabia que não queria mais voltar ali onde morou por dois meses. "Eu trabalhava e recebia pouco". Levantou as mangas da camiseta e seus braços estavam marcados pelo sofrimento. O que ainda vive é sua identidade: "Eu sou e sempre serei um Xucuru".


*Os nomes citados foram autorizados à esta publicação.

*Dos três orçamentos que entreguei à escola, o Maru foi o escolhido, por questões de custo-benefício e ele foi até a nossa escola, se apresentou para a Turma do Beija-flor com história, brincadeira, música e dança do seu povo Huni Kuin e, ainda passou por todas as salas respondendo as curiosidades das crianças. Consegui fazer o fechamento do trabalho de um semestre inteiro com a apresentação do Maru, que se disponibilizou em voltar quando precisarmos.

*Piatã foi acolhido por uma das aldeias e está se reconstruindo das traumáticas experiências vividas em terra indígena e nas mãos daqueles que destroem tudo que tocam..


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