Separados Pela Guerra

 No dia 05 de maio de 1936 minha vida mudou. Toda manhã eu me arrumava para ir trabalhar no atendimento aos feridos de guerra, enquanto minha mãe ficava em casa recebendo as fardas para costurar e trocar botões. Eu saia de casa acompanhada de meu pai, ele ia até a frente do alojamento comigo e seguia para o jornal onde trabalhava.

Durante o ofício minha atenção era totalmente destinada aos "velhos de guerra", velhos de muitas idades, dos mais jovens aos mais maduros, a todos os necessitados. De todo o trabalho, tinha um tempinho para fazer um lanche, levava na bolsa uma sanduiche que minha mãe fazia e embalado num guardanapo de pano e uma fruta quando tínhamos em casa.

Naquela tarde não foi diferente, me sentei para descansar do lado de fora, num local arborizado com alguns bancos. Estendi um lenço para me sentar, abri o lanche e a garrafa térmica com uma bebida quente e uma banana de sobremesa. E, depois voltei ao trabalho até o momento que papai passou para me encontrar.

No caminho de casa, meu pai me disse para esperar na frente de uma pequena casa, de portão verde, onde ele entrou sozinho e com certo receio eu fiquei esperando por ele do lado de dentro do pequeno jardim murado próximo as folhagens do jardim que me escondia de oportunistas e curiosos.

Meia hora depois, papai sai da casa na companhia de um jovem rapaz bem apessoado, me apresenta e seguimos até o barranco que dividia o bairro alto do bairro pobre onde morávamos.

Chegamos em casa, minha mãe nos esperava com o caldo grosso na boca do fogão à lenha, a mesa arrumada para quatro. Eu não entendia como ela sabia que íamos receber uma visita para o jantar. Segui para me trocar, tirar o avental e meus sapatos de trabalho, lavar as mãos.

Nós quatro nos sentamos à mesa, fizemos nossa oração e jantamos no silêncio com a luz da lamparina acesa. Ajudei mamãe a lavar a louça e arrumar a cozinha, separei um avental limpo para o dia seguinte, limpei os sapatos, enquanto minha mãezinha organizava meu lanche para o dia seguinte e enquanto isso, meu pai conversava com o jovem rapaz sobre alguns planos no cômodo ao lado que minha mãe tivera arrumado para ela passar a noite.

Tentei perguntar a ela, mas numa troca de olhares entendi que eu não devia perguntar nada, pois quanto menos eu soubesse mais segura eu estaria.

Papai trabalhava num pequeno e conhecido jornal da cidade, as vezes ele precisava se comunicar com algum contato para esclarecimentos, que era o que ele dizia, mas eu achava aquilo muito estranho e perigoso.

Fui me deitar enquanto minha mãe terminava a lida da casa e meu pai continuava a conversar com o jovem rapaz que talvez morasse do lado rico da cidade.

Eu sentia meu coração apertado sabendo que meu pai podia estar correndo risco de vida, mas eu não podia fazer muita coisa se não respeitar suas escolhas.

Era tempo de guerra, tínhamos horário de recolhimento e de apagar as "luzes", nossa caminhada pela cidade era restrita e perigosa.

Na manhã seguinte, assim que me levantei fiz toda a rotina matinal, ajudando minha querida mãe na lida da casa. Me arrumei para trabalhar quando ouvimos a sirene de recolher, nem saí, fiquei em casa preparando o almoço para nós quatro até que ouvimos as palmas vindas do portão de casa.

Fui até o quintal e de lá olhei para o portão avistando um moço pedindo ajuda, numa mão ele carregava uma maleta e na outra um quepe. Me cumprimentou perguntando da costureira, minha mãe. O chamei para entrar enquanto o rapaz rico se escondia no porão da casa. Enquanto ele sentava-se na cozinha mostrando para mamãe a farda descosturada, eu servia um chá e oferecia uma fatia de pão caseiro.

Com fome ele estava, era nítido. Entre uma mordida e um gole de chá, nossos olhares se cruzavam.

Minha mãe olhava de longe ao mesmo tempo que ela costurava, o meu pai estava no quintal fazendo algumas tarefas para ajudar no trabalho doméstico, mas queria voltar a ouvir o rádio. Sentei à mesa para conversar, falei do meu trabalho descobrindo que ele também estava trabalhando no mesmo local que eu, era médico. Tinha acabado de chegar vindo de outra cidade. Disse que tinha um sonho de constituir uma família, construir uma casa e queria ficar por aqui mesmo, pois tinha gostado da cidade. Falou da família, dos cães, dos amigos e do fronte, dos homens adoecidos.

Contou que tinha vontade de voltar para a cidade litorânea que ele trabalhou pela primeira vez que passou fome e viu seus amigos morrerem lutando.

Quando mamãe terminou, ele pediu um lugar para se trocar, agradeceu, pagou pelo serviço e saiu pelas ruas acompanhado de alguns soldados.

Na manhã seguinte, após o café, papai se arrumava para ir trabalhar, deixando o rapaz rico em segurança na casa com a mamãe.

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Vila das Borboletas