Neguei minha ancestralidade?

 Durante o curso "Cozinhas & Infâncias" da Secretaria Municipal de Educação, recebi materiais sobre africanidades, me mantive imersa por dias pois tudo foi enriquecedor e que me fez pensar quem eu sou, o que me torno todos os dias e de onde eu vim. 

Vim de uma família paterna de ancestralidade colonizadora, uma mistura de povos italianos, espanhóis, argentinos e paulistas nascidos nas cidades do interior de São Paulo, pelas fazendas de café e paulistanos assim como o meu pai. Por parte de mãe, avós e bisavós árabes, de Homs na Síria e de Beirute no Líbano (beirando o mar).

Não foi fácil ser constituída mulher numa família árabe, percebendo as diferenças entre homens e mulheres, entre meninas e meninos, mesmo sendo a única filha sobrevivente e a única neta por muitos anos, até que chegou "o homem" da família. Eu morava em São Paulo e a família da minha mãe em Curitiba, com suas tradições arraigadas e tradicionais, enquanto em São Paulo, a diversidade e a modernidade longe das tradicionalidades curitibanas.

Toda vez que eu ia para Curitiba acontecia o inevitável, o choque de realidades, de gerações e de costumes. A viagem começava na dificuldade porque sempre viajávamos na minhas férias escolares e nos feriados. Sair de São Paulo nos feriados, era quase a certeza de que não conseguiríamos um táxi até a rodoviária se não fosse contratado bem antes do dia da passagem. Além disso, tinha o meu problema de refluxo que me fazia passar mal em toda viagem e naquela época nem os médicos sabiam disso e a rodovia da morte (BR-116) conhecida na década de 1970. Mesmo assim, visitar meus avós maternos era uma delícia, assim como comer comida de vó, levar minha avó para dormir nas salas de cinema (ela levantava cedo).

Quando era feriado, minha avó e minha bisavó levantavam cedo às 4h00 para preparar massa de esfihas de escarola, pão sírio, tabule, mamul (doce com nozes), quibe cru (era carnívora), quibe de batata e para esses dias a gente tomava refrigerante Cini de framboesa, abacaxi ou de gengibre.. hummm..que saudades!! Porque quando eles se foram, eu tentei manter essa tradição de juntar pessoas, mas a realidade foi bem diferente da expectativa e das vivências que tive como referência familiar.

Nem tudo foram flores, tenho lembranças dolorosas do que aconteceu com o meu avô na ditadura, dos telefones grampeados, da polícia daquela época, mas eu tenho muito orgulho dele e sei que ele estava lutando por liberdade política e de expressão.

Minha bisavó, depois que veio para o Brasil nunca mais voltou para o Líbano, ela tinha saudades da mãe e dos irmãos. Minha avó nunca fez o curso de bolos decorados que ela tanto quis e minha mãe nunca conseguiu fazer a tão sonhada faculdade de arqueologia. Minha mãe perdeu uma filha e depositou em mim toda suas esperanças, até o que não era para ser para mim. Ela dizia que não podia viver o luto pela filha porque tinha eu para cuidar.

Conforme o tempo foi passando e eu entendendo algumas coisas como expectativas e realidades, construímos um muro entre nós, ela sendo ela como sabia ser, esperando tudo de mim que não queria ser e eu negando minha ancestralidade porque ser mulher num mundo preconceituoso e machista já não é fácil e ainda mais ser a neta de uma família árabe, eu não queria mais depois que meus "velhos" morreram jovens. Para mim, até hoje, essa "perda" criou um buraco negro, perdi meu porto seguro, minhas referências e meu solo sagrado. Por mais que houvesse o choque de gerações, meus avós me acolhiam e me ouviam com atenção, diferente do meu pai que sempre me via como pequena e minha mãe sempre me julgava para tudo que eu fazia "era culpa minha". O muro que construímos entre nós, na relação mãe e filha, fora por falta de diálogo e de acolhimento.

Desde que me conheço por gente que ganhava meu próprio dinheiro, fiz terapia, para me manter de pé e continuar caminhando...

"Muita água passou por baixo da minha ponte", vivências muito dolorosas, que nem a minha família sabe. Eu e a minha mãe moramos bem pertinho, mas nem sempre nos falamos porque cada uma carrega sua bagagem, aquela que cada uma sabe carregar.

Sobre o meu pai de família pobre conseguiu se formou em medicina em Curitiba onde conheceu minha mãe, se casaram e vieram morar em São Paulo onde eu nasci. O pai do meu pai não aceitava o filho por ele ser deficiente físico, que para mim era algo natural, afinal mesmo com a deficiência, ele fazia tudo que qualquer pessoa faria, nadava, andava de bicicleta, dirigia, caminhava, trabalhava..

Acredito eu, estou tentando quebrar esses ciclos ancestrais, mudando a rota da vida. Casei como todas elas, me divorciei saindo de uma relação abusiva, criei uma filha para o mundo e lá está ela, no mundo fazendo seu sonhado doutorado. E, eu refazendo a vida, me mantendo de pé, buscando me reconectar comigo mesma e com a vida, conhecendo lugares, pessoas e histórias de outras pessoas, aprendendo com cada pessoa aleatória que passa por mim, construindo relações, escrevendo para leitoras e leitores, sendo psicóloga, pedagoga, escritora, restauradora de móveis antigos, fazendo pintura intuitiva, me aventurando em travessias de águas abertas, empoderando mulheres, lutando por direitos iguais, conhecendo ervas medicinais, consumindo orgânicos, cuidando da saúde física, mental e espiritual, dando-me oportunidades de ampliação profissional, nomeando sentimentos e emoções, construindo um futuro, vivendo o presente que a vida me dá diariamente, cuidando da casa física e da casa espiritual, cuidando de quem quer ser cuidada, sem salvar pessoas que não querem ser salvas.

Hoje tenho consciência que aceito minha ancestralidade através da gastronomia familiar. Hoje sou vegana e me alimento das possibilidades de pratos árabes sem sacrifício animal, que faço para meu consumo e para as marmitas que comercializo no "Hortelã Marmitas Veg". Carrego no pulso esquerdo, a folha da hortelã, símbolo intuitivo da comida das mulheres árabes da minha vida. 

"No mundo eu tenho meu lugar, onde tudo está conectado, entre céu e mar"

Imagem: pesquisa dia 10/09/2023 às 18h05

https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Mapa_mundi_divisiones_blanco.PNG






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