Um conto de uma logline

Logline

 "A obstinada psicóloga e escritora busca nas redes sociais personagens reais para contos fictícios, porém vê-se envolvida numa trama cibernética, chantageada pela máfia dos Emirados Árabes". Zaira K. Fabre


360º

Todo dia a mesma rotina pesada e cansativa de compromissos profissionais, de casa para o trabalho e vice-versa, sem deixar de falar do home office, em meio a pandemia. Um livro começado, com aproximadamente setenta e duas páginas escritas, sem ter a noção exata de terminar e enviar para a editora dentro do prazo estabelecido.

São Paulo, que eu olhava pela janela, ainda escura quando me levantava de madrugada. Arrumava a cama, tomava banho e o café preto de todos os dias com pão e manteiga. Colocava na sacola a marmita preparada na noite do dia anterior, escovava os dentes enquanto olhava as horas e a agenda de clientes do consultório.

Com a bolsa transpassada nos ombros e as chaves na mão, fechava a porta de casa com a certeza que tudo estava em perfeita ordem. Ligava o carro e abria o portão, e dirigia por uma hora e meia. No consultório, o vigia me recebia com um sorriso tímido no canto da boca, já que a hora que eu chegava ele saía.

Olhava a agenda no balcão da recepcionista e ia até a sala que alugava, para organizar e começar a atender meus clientes. Entre um atendimento e outro, um gole de água sem pensar numa esticada no corpo e a possibilidade de bater papo com os colegas e café, mas pensava nas férias merecidas de poucos planos e muitas pesquisas. Olhava imagens de paraísos tropicais, mas pensava que podia parecer uma bobagem, afinal sair da rotina era uma ótima opção; até para o lugar mais inóspito de qualquer canto do mundo.

No caminho de volta para casa enquanto dirigia, pensava num banho quente, descanso merecido, pão de queijo saindo do forno, antes de continuar a rotina no computador. Gostava de dirigir e caminhar pois nesses momentos organizava os pensamentos, fazia planos do dia e repassava na mente os compromissos, e era nesses instantes que lembrava de buscar a roupa na lavanderia, de receber as encomendas que o filho esquecia de buscar no correio.

Gostava de chegar em casa antes do final da tarde. No fundo do quintal, me sentava no velho banco de madeira descascado pelo tempo. Ficava lá tomando meu café com pães de queijo enquanto contemplava o pôr-do-sol e o céu rosado e suas nuances até alcançar o azul e escurecer. Para mim eram momentos de relaxamento, eu com o gato preto e branco e a cachorrinha, entre um cafuné e uma lambida, conseguia esvaziar a mente, relaxava o corpo e me perdia entre sonhos e distrações da minha própria vida, porque enquanto cuidava da vida emocional dos outros, eu via a minha vida como se por entre as sutilezas de uma cortina de voil translúcida onde os olhares curiosos visse apenas uma silhueta sensual. Sentia uma misto de emoções, me redescobrindo como mulher, depois de tentativas de relacionamentos descritos como uma corda de sisal arrebentada pela força da maré.

Vivia momentos de intensidade, sem a superficialidade ou de relacionamentos líquidos. Sentia as emoções proporcionadas nas relações, onde me jogava no mar revolto como se não houvesse o amanhã. Buscava sempre relações não convencionais, vivendo as surpresas e a constante busca pelo desconhecido.

Naquela noite, deitei cedo na tentativa de descansar tanto o corpo como a mente, mas tinha uma sensação de que algo estivesse para acontecer. Rolei a noite toda sem ao menos conseguir fechar os olhos. Minha cabeça fervilhava de histórias contadas pelos clientes de tinha atendido na clínica naquela manhã. Levantei, coloquei o chinelo e o roupão. Na cozinha encontrei com meu filho que fazia um chá para ver se ajudava a dormir. Sentei com ele e ali fiquei por alguns momentos, apreciando a prosa. Ele foi deitar-se após o chá que também tomei em sua companhia e eu voltei para o quarto, porém sentei na cadeira de madeira da bancada do meu quarto, fechei a persiana, e trabalhei no livro que vinha escrevendo a algum tempo. Escrevi tudo que vinha à mente, tanto as discussões do trânsito, as palavras sofridas dos atendimentos, as brigas dos vizinhos, os latidos dos cães, a descrição facial do vigia da clínica. 

Trabalhei no livro como a tempos não vinha fazendo, mas aproveitei todas as boas histórias trocando os personagens e substituindo detalhes que não pudesse comprometer a minha ética profissional. Comprometida em enviar o livro no prazo para a editora, não medi esforços, digitei a madrugada toda, sem a preocupação dos compromissos do dia seguinte. Em certo momento, alonguei o corpo e olhei para a tela do celular, me dando conta de quantos dias não lia mensagens ou acessava as redes sociais.

Lá pelas tantas, fiz as últimas considerações naquele capítulo, desliguei o notebook com a sensação de missão cumprida. Tomei um banho quente e relaxante, deitei embaixo dos cobertores e assim que peguei no sono, o despertador tocou me avisando que era hora de levantar, cinco e meia de sexta-feira.

Enquanto me arrumava para sair, engolindo o café e mal comendo o pão, peguei o chaveiro, catei a bolsa que estava no sofá e saí deixando a porta sem trancar. Não sei porque, mas quando entrei no carro resolvi olhar o celular e li uma das mensagens. Era da clínica e dizia "Remarquei seus clientes de amanhã, porque depois que você saiu, tivemos um imprevisto. O técnico virá amanhã fazer o conserto elétrico. Bom descanso e aproveite seu final de semana prolongado".

Relaxei, respirei fundo, voltei para dentro de casa sem saber o que fazer com tantas horas livres. Pendurei a bolsa e as chaves, troquei de roupa, espreguicei o corpo cansado, ouvindo o estalar dos ossos das costas, deitei na cama e dormi naquela manhã de sexta.

Lá pelas tantas acordei, peguei o celular para ver as horas quando me deparei com mais de trezentas mensagens e mesmo com a curiosidade de ler para colocar a vida digital em dia, fui para o quintal aproveitar o sol e meditar; não queria ficar à mercê das redes sociais.

Não tinha que dar satisfação do que fazia para ninguém. Já tinha casado e divorciado, criado um  filho abençoado. Tenho minha carreira, faço o que eu gosto e cuido da minha vida, eu pensava nisso com gratidão, de estar onde eu me encontrava por conta da dedicação, esforço e foco numa vida que eu mesma escrevia diariamente. 

O filho, sabendo que eu estava de folga, teve a iniciativa de preparar nosso almoço. Sentei-me com ele como a tempos não fazíamos. Almoçando e conversando sobre seus projetos, me contou sobre seus desejos. Quando orgulho de ver quem ele vinha se tornando, o quanto eu tinha o influenciado nas suas escolhas profissionais. Via nele um homem aventureiro, pés no chão, apaixonado pela vida de um modo geral e amigo; eu tinha um filho amigo.

Enquanto ele tirava a mesa e eu lavava a louça, ele volta para o trabalho e eu para o celular. Tinha que colocar a leitura das mensagens em ordem. Enviei email para todo tipo de gente, li todas as mensagens, respondi, enviei documentação pendente e quando achava que tinha dado conta de resolver as pendências, me deparei com uma mensagem escrita numa tradução muito mal feita.

No perfil profissional, onde eu deveria alimentar diariamente com postagens, estava lá aquela mensagem traduzida do inglês para o português sem concordância verbal e nominal.

Sinceramente me chamou a atenção, porque foi desta forma, em outro momento, que recebi um pedido de socorro. Voltei na mensagem, li novamente e com a dúvida de interagir, eu perguntei no que podia ajudar. 

Seu nome era John, tinha cinquenta e dois anos e estava à procura de uma mulher para casar. Achei aquela conversa audaciosa porque ele tinha feito uma leitura do meu perfil a partir de quais referências? O que ele tinha visto em mim a possibilidade de ser sua esposa? Como se eu quisesse me casar de novo, mas mesmo achando aquilo muito estranho, minha curiosidade foi maior. 

No começo da carreira de psicóloga, eu tinha trabalhado na área jurídica, fazia perfil de criminoso e foi esse ponto que me chamou muito a atenção naquele diálogo.

Eu então interagi com ele, respondendo suas perguntas, tomando os cuidados para não dar informações pessoais. Muitas das minhas respostas foram com dados fictícios e não reais. No bom português, dei corda para ver até onde ia sua petulância.

Muito cuidadoso e carinhoso no início, enquanto fazia sua explicação, perguntava se eu conhecia o programa médico sem fronteiras e o país que ele estava à serviço. Ele contou que trabalhava no Iêmen no Oriente Médio, como médico, mas ele era do México. Disse que por conta do trabalho, se sentia solitário, não tinha com quem conversar. Não era casado, não tinha filhos mas queria constituir uma família. Tinha visto minhas fotos e me achava interessante. Achava que um médico ia se entender muito bem com uma psicóloga (ignorando todos os demais detalhes de um relacionamento?).

Enquanto ele digitava suas longas mensagens, eu pesquisava na internet sobre golpes nas redes sociais, sobre tipos de golpes, me deparando com interessantes informações. Enquanto procurava e não me surpreendia muito, já que sei um pouco sobre mentes criminosas, falava com uma amiga sobre as fotos do perfil dele, que eu achava que o conhecia. Fiz um print da tela e enviei para ela.

No mesmo instante, ela disse que aquela foto era de um famoso médico que ia muito num programa de TV, me enviou o nome como estava no seu perfil. Fui procurar na busca e nas redes sociais, encontrando as mesmas fotos, além de inúmeros relatos de mulheres que já tinham caído no golpe desses criminosos.

Depois dessas informações comecei a questionar o tal John que falava comigo, a partir da minha leitura sobre as fotos da página dele. Em uma das imagens de um centro cirúrgico tinha uma mulher na equipe, e para quem trabalha no Iêmen, não achava provável ter mulheres trabalhando por lá e a resposta dele veio afirmar o meu pensamento "não tem mulher nenhuma na equipe, porque somos apenas homens".

De certa forma, ele também deve ter se sentido pressionado com tantas perguntas e quis dar o xeque mate. Daquele homem gentil, sedutor, carismático, de boa oratória mesmo não falando português; veio o homem grosseiro, manipulador, de caráter autoritário, mandando eu fazer uma chamada de vídeo para que ele me conhecesse melhor (me lembrei das histórias infantis com lobo mau); eu disse que não ia fazer.

Nesse momento ele estava furioso comigo, me questionando e dizendo que eu podia fazer sim e que eu tinha esse direito (como se eu não soubesse dos meus direitos de mulher). Eu disse que estava no trabalho e que se eu fizesse uma chamada de vídeo, ele seria rastreado, mas se para ele não tivesse problema eu faria sim.

Então enfurecido e grosseiro, eu sentia nas palavras dele suas reações, ele falou que se eu quisesse conhecê-lo melhor eu teria que fazer aquela chamada; agora aparecia o homem chantagista.

Ele se enfureceu querendo saber porque eu não faria o vídeo, já que ele queria me conhecer e nada melhor que uma chamada de vídeo. para gente ficar mais a vontade e se conhecer na intimidade.

Na mesma página interminável de reclamações de diversas mulheres que caíram no golpe, dizia que elas tinham sido enganadas e como procedia o crime, e comigo não foi diferente.

Depois que o criminoso se apresentava com um perfil  e fotos falsas, ele não sozinho e sim com uma máfia trabalhando junto, estudavam suas "presas", olhando fotos, idade, família. Enquanto um conversava com a escolhida, os outros participavam, tanto da conversa quanto da chamada de vídeo.

E o golpe procedia desde a conversa até a intimidade frente às câmeras. Do outro lado, os bandidos sedutores de mulheres solitárias, carentes, com baixa autoestima aceitam fazer essas chamadas e aí é que mora o perigo. Essas imagens são capturadas e usam para chantagear suas vítimas.

Sim...continuando essa história de amor e ódio, de um final de semana de folga e de grandes emoções. Fiz a chamada de vídeo com aquele homem musculoso e bem apessoado, mas mantive a minha câmera desligada, fazendo as capturas das imagens e seduzindo o criminoso com a promessa de abrir a câmera, quando eu estivesse nua e o desejando mais que qualquer homem que já havia conhecido.

Aquele que se apresentava no vídeo não era o homem da foto, era um sujeito negro, magro, forte e nu tentando fazer de mim mais uma vítima. Atrás dele tinha um lençol branco que vinha do teto ao chão, e por trás muitas sombras de corpos. Eu estava confusa, enebriada como se estivesse dopada, entrando naquele ambiente criminoso e quase abrindo a minha câmera, quando mais do que de repente, meu filho abriu num sopetão a porta do meu quarto aos gritos "Mãe!! Estou te chamando a horas e você não responde, achei que estava passando mal, o que aconteceu com você?".

Eu afastei a cadeira de frente do notebook, tremia de medo como se eu estivesse naquele lugar macabro, imaginando mulheres reféns, com os olhos avermelhados de tanto pavor. 

Meu filho me acolheu num abraço apertado, dizendo "está tudo bem". Desliguei o vídeo e ainda anestesiada de tanto pavor, passei o dia tentando entender quais os motivos reais me levaram a fazer tudo aquilo. Foi nesse momento que me vi no alto de uma montanha, me olhando no centro de tudo, dando uma volta de 360º em mim mesma, me perguntando como eu tinha chegado ali sem perceber.

Não sabia dizer se era uma máfia dos Emirados Árabes, porém um golpe sujo de um criminoso cibernético de qualquer lugar do planeta.

Coloquei a minha integridade em risco por conta de uma curiosidade momentânea e quantas mulheres caem nesse golpe manipulador de mentes porque ainda não aprenderam a se amar em primeiro lugar.

"Empoderamento feminino não diz respeito a ter poder, mulheres! Diz sobre aprender a reconhecer suas potencialidades e utilizar delas para viver uma vida integral sem a dependência emocional de outras pessoas


. Vem da alta autoestima, do autoconhecimento e de uma vida de cooperação e não de competição (de quem manda mais, em você)".

Caí no golpe de acreditar que eu era auto suficiente, mas não fui ao extremo, não me deixei chegar ao fundo do poço. Escapei com vida e com a certeza que as histórias infanto-juvenis trazem a moral "não converse com estranhos", além de outros detalhes.

Eu só quero viajar, ver o mar, encontrar amigos reais, viver a vida em paz. Sem ser refém de bandido ou de redes sociais. Bloqueei todos os John com perfis suspeitos e os denunciei. Fiquei com meus perfis bloqueados por três meses, até que os stories foi liberado, então fiz um vídeo dizendo o que tinha acontecido e em poucas horas minhas contas foram liberadas".

Zaira K. Fabre

*


Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O Turismo e a Claudinha

Autora

Vila das Borboletas