Nasci e agora?

 - Levei um tapa? Como ousa bater em mim? Aqui está claro, frio e apanhei para nascer?!? - resmungou em prantos a recém-nascida.

- É Anna, você nem imagina o que te espera! Como você é um recém-nascido não tem nenhuma consciência de quantas expectativas sua família depositou em você! Antes de você nascer, eles planejaram tudo, tudo mesmo! Não estou falando dos preparativos da casa ou o seu enxoval, estou falando sobre outras expectativas. Eles querem que você estude nos melhores colégios religiosos porque acreditam que lá terá as melhores instruções, eles querem que você brinque com os filhos dos amigos que tem a mesma condição social, eles querem que você torne-se médica e vá trabalhar no consultório do seu pai. -pensativo divagava o ser de luz.

- Você vai crescer forte e com muita saúde, mas vai passar por provações, provas de vida sobre muitos assuntos da vida, com amigas e amigos, com a família mais próxima e os parentes mais distantes, vai se orgulhar de suas escolhas e se colocar em dúvida, vai ter medo e com medo vai traçar suas rotas.

- Nossa!! Eu nem sei quem eu sou e você me entrega esse presente?

- Tudo que está colocado aqui não é estático, vai depender de suas escolhas, porém estamos no ano de 1821 e aqui as mulheres não tem voz!!

- Se elas não tem voz, como me tornarei uma médica? - questionou Anna.

- Tudo vai depender de você. - disse o ser de luz.

Anna adormeceu para sempre? Não!!! Aqui é vida real e não conto de fadas. Anna não nasceu princesa, não vai conhecer um "princeso", não vai ao baile, não vai perder o sapato de cristal na escadaria do castelo, mas vai perder a identidade para se tornar o que ela mais vai desejar ser nessa vida. 

*

- Cresci e hoje sou uma adolescente, querem que eu me case com o senhor fulano de tal, sem amor e apenas com um contrato nupcial. Receberei o nome do meu marido, perco a minha identidade. Estudei tanto naquele internato, com aquelas freiras, aprendi tudo o que eu não posso fazer. Mas o que eu posso? Me ensinaram que eu tenho que cozinhar, costurar, bordar, amar incondicionalmente quem eu não amo, que tenho que abaixar a cabeça e ficar de boca fechada.

- Não!!! Eu sei o que eu quero e vou fazer tudo isso acontecer sem me rebelar. Hoje eu saio dessa instituição de freiras e vou para casa. Não quero me casar ou ter filhos em meus 18 anos, não sou velha como considera a maior parte dos parentes da minha família.

- Hoje eu visto as roupas do meu irmão, as calças compridas do jovem Rafael, prendo meus cabelos na boina, calço seus sapatos pretos e uso seus suspensórios, prendo uma faixa bem apertada nos meus seios e vou ser um homem para estudar a medicina que um dia serei uma doutora. - pensou Anna cheia de si.

- Não serei apenas a médica, serei a mãe, a esposa no meu tempo, com quem quiser me admirar.

- Em outros tempos, isso vai ser denominado uma "mulher foda". - disse o ser de luz.

*

- Hoje tenho 45 anos, me tornei uma médica renomada mesmo sendo mulher em 1866. Acesso lugares compartilhado com homens, mas eles me respeitam pela profissão porque fora dali eu não tenho muito valor social ou como eu vejo, eles não podem se dar ao luxo de contrariar a sociedade e as esposas. Cirurgias fazemos com médicos homens e eu a única mulher. Hoje estou escrevendo história como qualquer outra pessoa inseridas em convicções. Me casei e recebi o sobrenome do meu esposo, regras sociais da época, mas eu sei quem eu sou e como me identifico. Temos filhos e criei expectativas para a vida deles, porém respeitando seus desejos pessoais e orientando seus passos dentro de todas as possibilidades que darei a cada um deles. Minha família ainda acredita que eu fui tola em minhas escolhas porque eles acreditam que a mulher nasceu para servir o esposo e a família.

- Estou acompanhando sua jornada - Indagou o ser de luz.

- Para a minha época estou ficando idosa, realmente o meu corpo e a minha energia não é mais a mesma. Estão acontecendo mudanças em mim, com a minha pele menos elástica, meus cabelos estão perdendo a cor natural do castanho,  tem noites que não durmo mesmo com sono, meu humor não é mais o mesmo, nem sempre meu companheiro entende com compreensão e carinho. E antes que eu vá preciso eternizar minha história para que outras mulheres possam acreditar que a vida pode ser surpreendente.

*

- Hoje meu livro está sendo vendido, até o momento 500 exemplares da minha autobiografia. Não é muito, mas fiz a minha parte. Meus filhos crescidos com seus filhos pequenos, sou avó. Em casa estou vivendo o ninho vazio e tendo que olhar para mim mesma como fazia na adolescência, porém agora com mais maturidade. Olho ao meu redor e vejo pessoas zombando e mim, sem paciência por eu ser mais velha e ter cabelos brancos. - refletia Anna olhando para tudo que construiu.

- Hoje eu percebo que fui muito corajosa por entender que não existem princesas e nem princesos porque não somos uma fantasia de nós, somos de verdade. Mesmo com todas as expectativas da minha família colocadas em minha vida, tive a coragem de quebrar crenças e investir na minha carreira profissional quando toda a maioria das mulheres estão em casa cuidando das suas famílias. Percebi que corria o risco de perder minha identidade quando me casasse por apenas transpor a realidade da vida em família para a realidade de uma vida de casada, mas nesse meio de caminho eu me fortaleci enquanto pessoa e mulher. Olhando para um passado não tão distante que me construí em mulher desempenhando papéis sociais como qualquer outra mulher mesmo que não exerça uma profissão e recebi o sobrenome do meu marido como manda as tradições sociais da época. Minha família como tantas outras famílias mantêm suas crenças limitantes acreditando que ainda hoje mulheres precisam ser submissas aos seus esposos, anulando-se, mas eu acredito que podemos nos desvencilhar e construir novas crenças em fases diferentes das nossas vidas.

- Percebo que a vida adulta e madura na maior maturidade não chega para todas, mas mesmo àquelas que me criticaram por meus cabelos estarem brancos, amarelados ou cinzentos, calaram-se quando suas fases da vida idosa chegou.

- O que me incomoda agora não é a percepção de mim mesma, mas a percepção que o outro tem de mim com o olhar distorcido, com olhar de julgamento sem empatia. Tenho que me lembrar que nem todo mundo é capaz de sentir empatia pelos outros, nem todo mundo sente reciprocidade pelos sentimentos e pelo outro estar bem consigo mesmo.

*

O que esta Anna não sabia é que existiu uma mulher chamada Elizabeth Blackwell, a primeira mulher a se formar e exercer a medicina nos Estados Unidos, uma mulher pioneira de acordo com a pesquisa no Wikipédia. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Elizabeth_Blackwell

Anna trouxe suas reflexões às questões que a afetaram, numa época que se pensarmos não tão distante de nós. Vivemos numa sociedade que escreve sua realidade diariamente e nela estamos inseridas. Nossas tentativas de nos reinventar são constantes, assim como nossas formas de viver um dia de cada vez, na tentativa de entender porque os comportamentos dos outros nos afetam tanto, porém nesse movimento de tentativas proponho um olhar mais apurado de nós mesmas, um olhar mais atento para nós, por que nos afetamos com as opiniões dos outros, por que nos deixamos sentidas pelas atitudes não empática dos outros, e como fazemos para nos sentir melhores nesse panorama todo.

Precisamos debochar e brincar com nossos cabelos por exemplo, nos sentir de fato libertas por não precisarmos dar satisfação mensalmente para nossas cabeleireiras e deixar lá uma quantidade significativa. O que podemos fazer com esse valor que não vai mais para a cabeleireira? Viajar, dançar, pagar um serviço de fotografia, comprar um vestido novo, hospedar na cobertura de um hotel de luxo, fazer um banquete, alugar uma limosine e fazer uma live. 

Proponho a vocês que brindemos mais por nosso privilégio de estar na melhor idade com nossos cabelos brancos. Sejamos mais criativas!!





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